quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Augusto dos Anjos






























Versos Íntimos

Augusto dos Anjos



Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!





O poema acima foi incluído no livro "Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século", organizado por Ítalo Moriconi para a Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2001, pág. 61.

Imagem: Peter Cakovsky




















































Sofredora


de Augusto dos Anjos


Cobre-lhe a fria palidez do rosto
O sendal da tristeza que a desola;
Chora – o orvalho do pranto lhe perola
As faces maceradas de desgosto.


Quando o rosário de seu pranto rola,
Das brancas rosas do seu triste rosto
Que rolam murchas como um sol já posto
Um perfume de lágrimas se evola.


Tenta às vezes, porém, nervosa e louca
Esquecer por momento a mágoa intensa
Arrancando um sorriso à flor da boca.


Mas volta logo um negro desconforto,
Bela na Dor, sublime na Descrença.
Como Jesus a soluçar no Horto!




Imagem - Rege Curtin











Psicologia de um vencido
Augusto dos Anjos






Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.


Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que escapa da boca de um cardíaco.


Já o verme este operário das ruínas
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialidade inorgânica da terra!




imagem: ardalan Azarmi













imagem: Janusz Taras






Amor e Crença

de Augusto dos Anjos

                                       E sê bendita!
                                      H. Sienkiewicz



Sabes que é Deus?! Esse infinito e santo
Ser que preside e rege os outros seres,
Que os encantos e a força dos poderes
Reúne tudo em si, num só encanto?

Esse mistério eterno e sacrossanto,
Essa sublime adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava as dores e que enxuga o pranto?!

Ah! Se queres saber a sua grandeza,
Estende o teu olhar à Natureza,
Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!

Deus é o templo do Bem. Na altura Imensa,
O amor é a hóstia que bendiz a Crença,
ama, pois, crê em Deus, e… sê bendita!






SOBRE AUGUSTO DOS ANJOS E SUA POESIA
[copiado daqui]


O amor da humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
O amor! Quando virei por fim a amá-lo?


A poesia de Augusto dos Anjos – paraibano nascido no século passado – é de um materialismo quase brutal, embora seja no fundo, obra de um idealista, que não detestava – em absoluto – o amor, mas queria-o em seu estado impossível, espiritual, etéreo. Ledo engano de quem tomar o poeta materialista em filosofia como um materialista nos sentimentos. Augusto, bardo incomum, estranho, magérrimo, era todo humanidade: leal, cortês, honesto, coisas raras de encontrar naqueles tempos e ainda hoje. Mas foi também poeta da morbidade, da descrença, da morte.
É de Orris a seguinte descrição de Augusto dos Anjos: “Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida – faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia a catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura, e nos lábios um crispação de demônio torturado. Nos momentos de investigações suas vistas transmudavam-se rápido, crescendo, interrogando, teimando. E quando na narinas se lhe dilatavam? Parecia-me ver o violento acordar do anjo bom, indignado da vitória do anjo mau, sempre de si contente na fecunda terra de Jeová. Os cabelos pretos e lisos aparentavam-lhe o sombrio da epiderme trigueira. A clavícula, arqueada. Na omoplata, o corpo estrito quebrava-se numa curva para diante (...). Essa fisionomia, por onde erravam tons de catástrofe, traía-lhe a psique. Realmente, lhe era a alma uma água profunda, onde, luminosas, se refletiam as violetas da mágoa”.
Augusto dos Anjos publicou um único e afortunado livro, Eu, obra em que cantou a matéria, idealizando-a, revelando-a sob uma rutilante (e até rosnante) combinação de palavras por vocábulos esdrúxulos e cientificistas que concorreram para agravar o seu pessimismo lacerante. Cantou, como Baudelaire, as misérias da carne, a putrefação dos corpos, monista violento:

já o verme – este operário das ruínas
-
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para
roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

(“Psicologia de um Vencido”)
 
Na opinião de Alfredo Bosi, Augusto dos Anjos deve ser visto como um poeta poderoso, que deve ser mensurado por um critério estético aberto, capaz de abrigar e reconhecer, além do “mau gosto” do vocabulário rebuscando e científico a dimensão cósmica e a angústia moral de sua poesia. Bosi avalia que a dimensão cósmica vem em primeiro lugar, porque Augusto dos Anjos centrava no ser humano, de maneira obsedante, todas as energias do universo que teriam se encaminhado para a construção do mistério que é o “eu”.
Ademais, o evolucionismo de Augusto expressa-se bem em versos como esse: de “Psicologia de um Vencido”.

Eu, filho do carbono e do amoníaco

A postura existencial do poeta, apela ao universo do distanciamento científico: uma angústia esmagadora cresce e se avoluma diante da fatalidade que conduz os homens à senda inevitável da putrefação. Toda carne infalivelmente irá se decompor um dia. Interpretação poética do cosmos e desespero particular descambam num lamento das coisas, sentimento doloroso, a raiz de todas as dores está na vontade de viver:

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do orbe
oriundos,
O choro da Energia abandonada!

É a dor da força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos
profundos,
Que, podendo mover milhões de
Mundos,
Jazem ainda na estática do nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é, em suma, o subconsciente aí
formidando
Da natureza que parou, chorando,
No rudimento do desejo!

Poeta, por isso, formidável, pelo poder de penetração, pelo caráter enigmático do texto, pela capacidade de revelar estratos dantescos da alma. A excentricidade desses “acordes lúgubres” levou muitos dos críticos e amantes da literatura a recriminá-lo em seu tempo. A começar pelo fato de que não se filiou a nenhuma escola nem adotou as normas à vazão utilizadas pelos literatos da época. Tomou como regra de escrita a sua própria, o seu próprio timbre e voz; seu individualismo apoderou-se da língua portuguesa e fê-la reverberar a sua angústia, a sua descrença no amor, na humanidade, na turba.
Para o poeta do Eu, as forças da matéria, que pulsam em todos os seres e em particular no homem, conduzem ao Mal e ao Nada, através de uma destruição implacável; ele é o espectador em agonia desse processo degenerescente cujo símbolo é o verme:

Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

(“O Deus Verme”)

Diante da constatação de que para o homem não há outro destino senão putrefação e morte (o autor, ao que parece, não cria em Deus, pelo menos não como o entendem os teólogos), abala-se a concepção de amor sensual e prazer de Augusto dos Anjos:

Sobre história de amor o
interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de
amar-me

(“Queixas Noturnas”)

Acerca do prazer ele diz:

Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de
casa!

Antônio Houaiss diz a esse respeito: “Eis porque lhe chamo poeta da morte”, porque não amava nem a Vida nem o Amor. Estava no seu direito, na sua fatalidade”. Um soneto cabalístico que o poeta fez pouco antes de sua morte, “Último Número” resume quem sabe, o seu embate com o cosmo, com a poesia, com a humanidade:

Hora da minha morte. Hirta, ao meu
lado,
A idéia estertorava-se... No fundo
Do meu entendimento moribundo
jazia o Último Número cansado. 

Era de vê-lo imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora de sucessão, extranho ao mundo,
Como o reflexo fúnebre do Incriado! 

Bradei: - Que fazes ainda no meu
crânio!
E o Último Número, astro e
subterrâneo,
Parecia dizer-me: “É tarde, amigo! 

Pois que a minha autogênita Grandeza
Nunca vibrou em tua língua presa,
Não te Abandono mais! Morro
contigo!”

 
Augusto dos Anjos morreu muito cedo, aos trinta anos. Deixou uma obra breve e imperfeita, mas é imperdoável não reconhecer-lhe entre essas imperfeições o cintilar de uma literatura contundente e nova, brotada num ambiente inóspito. Orris Soares diz a respeito de seu único livro: “Eu é um livro de sofrimento, de verdade e de protestos: sofre as dores que dilaceram o homem e aquelas do cosmos; e, em relação ao homem e ao cosmos, diz as verdades aprendidas por indagação e ciência, protestando em nome dellas, pelo que no homem e no cosmos há de desconexo, de ilógico, de absurdo Um livro de pensamentos, sem fantasias nem doidivanices”.

Otto Maria Carpeaux escreve sobre Augusto dos Anjos

Augusto dos Anjos não teve sorte na vida: parecia a personificação de uma fase especialmente infeliz da evolução intelectual do Brasil, mistura incoerente de uma cultura ou semicultura bacharelesca, ávida de novíssimas novidades científicas, mal assimiladas, e dos ambientes das massas populares miseravelmente abandonadas nas ruas estreitas do Nordeste tropical. Ninguém o compreendeu, ninguém lhe leu os versos nos cafés superficialmente afrancesados do Rio de Janeiro, e é conhecida a cena de um dos seus raros admiradores que leu um soneto de Augusto dos Anjos a Olavo Bilac e recebeu a resposta desdenhosa: "É este o seu grande poeta? Fez bem ter morrido!" Foi uma época de eclipse do sal, de trevas ao meio-dia.
Quem salvou a fama póstuma de Augusto dos Anjos foi seu povo, o do Nordeste e do interior do Brasil. A abundância de estranhas expressões científicas e de palavras esquisitas em seus versos atraiu os leitores semicultos que não compreenderam nada de sua poesia e ficavam, no entanto, fascinados pelas metáforas de decomposição em seus versos assim como estavam em decomposição suas vidas. Nada menos que 31 edições do seu livro EU dão testemunho dessa imensa popularidade que é o reverso da medalha - repeliu os leitores exigentes, de tal modo que, até durante a fase modernista da literatura brasileira, os versos de Augusto dos Anjos passaram por exemplos de mau gosto de uma época superada.
Foram alguns poucos leitores dedicados que conseguiram reivindicar e restabelecer a verdadeira grandeza de Augusto dos Anjos: Álvaro Lins, Antônio Houaiss, Francisco de Assis Barbosa (e, assim como nos quadros que pintou de altar de igrajas medievais o pintor ousava colocar no último canto seu auto-retrato, assim ouso colocar no fim dessa lista meu próprio nome). Lendo e relendo o EU, sempre descobrimos coisas novas, estranhas e admiráveis. O mau-gosto da expressões científicas e pseudo-científicas? Augusto dos Anjos tem o poder extraordinário de revelar um sentido oculto nos sons dessas palavras bárbaras, que acrescentam um novo frisson às suas visões tétricas e profundamente comoventes. Suas rimas surpreendentes e extravagantes abrem horizontes nunca vistos; parece-se ele com os metaphysical poets ingleses que não conhecia. Até sabe dar sabor metafísico a nomes prórpios; e mesmo quem ignora que a casa do Agra no Recife, no fim da ponte Buarque de Macedo, é o necrotério, sebte todo termor da morte ameaçadora no verso: "Recife. Ponte Buarque de Macedo...", tremor devido ao terrificante e como que definitivo ponto atrás da palavra "Recife", censura que é a linha divisória entre a vida e o fim da vida.
Existem em Augusto dos Anjos inúmeros casos assim, de descoberta de um sentido novo das palavras. Nem sempre percebemos claramente os motivos da nossa admiração. É o esclarecimento desses motivos que devemos, agora, a Ferreira Gullar.
Sua análise estilística da poesia de Augusto dos Anjos é precisa, sem cair jamais no jargão pseudo-científico dos pseudo-especialistas. Tem, como ponto de partida, uma indicação exata da situação literária do Brasil naquele tempo e como base uma análise sociológica, não menos exata, da vida e morte e morte nordestina de que Augusto dos Anjos é o poeta. Mas essa crítica não é só estilística nem apenas sociológica. O permanente ponto de referência é a psicologia do poeta que deu a seu livro o título EU. É um trabalho completo.
Também é completo quanto às referências ao futuro. Augusto dos Anjos escreveu nas formas parnasianas do seu tempo. Modifica-lhes o sentido pelas influências de Baudelaire e de Cesário Verde e por algumas luzes do simbolismo. Mas preanuncia igualmente a poesia de Carlos Drummond de Andrade e de João Cabral de Melo Neto, justamente lembrados por Ferreira Gullar.
Quando Augusto dos Anjos morreu, o céu da poesia brasileira estava escurecido como por trevas ao meio dia. Ninguém o reconheceu. Hoje, a literatura brasileira parece, outra vez, escurecida por trevas. Mas quem sabe se não se encontra, irreconhecido entre nós - ou mesmo longe de nós - o grande poeta que sabe dizer como este povo sofre e lhe prever uma nova aurora.





 

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