sábado, 23 de janeiro de 2010

Dylan Thomas




MORTES E ENTRADAS
Dylan Thomas


Quase às vésperas incendiárias
De várias mortes próximas,
Quando alguém ante os despojos de quem mais amaste,
E desde sempre conhecido, tenha de abandonar
Os leões e as flamas de sua volátil respiração,
Quem dentre os teus amigos imortais
Elevaria o som dos órgãos do pó inventariado
Para lançar e cantar os teus louvores,
O que mais fundo os invocasse conquistaria a sua paz
Que não pode se afogar ou se esvair
Sem fim junto à sua chaga Nas muitas e alienantes dores
conjugais de Londres.

Quase às vésperas incendiárias
Quando diante de teus lábios e chaves,
Fechando, abrindo, se entrelacem os estranhos assassinados,
Aquele que é o mais desconhecido,
Teu vizinho, a estrela polar, sol de uma outra rua,
Mergulhará em tuas lágrimas.
Ele há de banhar teu sangue chuvoso no másculo oceano
Que percorrerá teu próprio morto
E fará girar sua esfera fora de teu fio de água
E entupirá as gargantas das conchas
Com todos os gritos desde que a luz
Começou a jorrar através de seus olhos tonitruantes.

Quase às vésperas incendiárias
De mortes e entradas,
Quando próximo e estranho, ferido nas ondas de Londres,
Hajas procurado a tua tumba solitária,
Um inimigo entre muitos, que bem sabe
Como cintila o teu coração
Nas trevas vigiadas, pulsando entre furnas e ferrolhos,
Arrancará os raios
Para tapar o sol, mergulhará, galgará tuas teclas sombrias
E fará definhar os ginetes para que recuem,
Até que aquele despojo adorado
Avulte como o último Sansão de teu zodíaco.
tradução: Ivan Junqueira
imagem: Hans Jorgen Kotter

 





 

CONTO DE INVERNO

Dylan Thomas

É um conto de inverno
Que o cego crepúsculo de neve transporta sobre os lagos
E os flutuantes campos da fazenda na taça dos vales,
Deslizando tranquilo entre os flocos agarrados com a mão,
Sobre o pálido bafio do rebanho junto à vela furtiva,

E as estrelas que caem frias,
E o cheiro do feno em meio à neve, e a distante coruja
Que adverte entre os apriscos e o gélido refúgio
Agarrado à fumaça branco-ovelha da chaminé da estância
Nos vales cruzados pelo rio onde a história é contada.

Outrora, quando o mundo envelheceu
Numa estrela de fé pura como o pão que boiava sem destino,
Como o alimento e as chamas da neve, um homem desenrolou
Os pergaminhos de fogo que ardiam em sua cabeça e em seu coração
Rasgados e esquecidos numa casa sobre uma dobra da campina.

E ardendo então
Em sua ilha flamejante cingida pela neve alada
E as esterqueiras brancas como a lã e os poleiros das galinhas
Que dormiam enregeladas até que a chama da aurora
Penteasse os pátios encapotados e os homens da manhã

Tropeçassem nas enxadas,
E o rebanho espreguiçasse, e o gato arisco perseguisse o rato,
E os pássaros eriçados saltassem para caçar, e as suaves
Ordenhadoras arrastassem seus tamancos sobre o céu desmoronado,
E toda a fazenda despertasse em seus brancos afazeres,

Ele se ajoelhou, chorou, rezou,
Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha
E à xícara e ao pão partido entre as sombras bailarinas,
Na casa abafada, no decorrer da noite,
À beira do amor, apreensivo e atraiçoado.

Ajoelhou-se sobre as pedras frias,
Chorou desde a crista da dor, rezou ao céu nublado
Para que a fome fosse embora uivando sobre alvos ossos nus
Além das estátuas dos estábulos e das pocilgas com tetos celestes
E do cristal da lagoa dos patos e dos ofuscantes currais solitários

Até o lugar das orações
E das chamas, onde pudesse vagar sob a nuvem
De seu amor cego pela neve e precipitar-se para as brancas tocas.
Sua miséria desnuda o golpeava e, arqueado, ele uivava
Embora som algum flutuasse no ar enrugado em sua mão

A não ser o vento que excitava
A fome dos pássaros nos campos do pão, da água, lançados
Nos altos trigais e a colheita a derreter-se em suas línguas.
E sua anónima miséria o enlaçava e ele ardia extraviado
Quando, frio como a neve, tinha de correr entre os vales cruzados

Pelos rios que desaguam na noite,
E afogar-se nos torvelinhos de sua miséria, e estender-se enrolado,
Agarrado ao centro desde sempre desejado do branco
Berço desumano e do leito nupcial eternamente procurado
Pelo crente perdido e o proscrito expurgado da luz.

Liberta-o, gritava,
Perdendo-o de todo no amor, e arroja a sua miséria
Nua e solitária na engolfante noiva
Para que ela nunca germine nos campos da branca semente
Ou floresça escarranchada na carne agonizante.

Escuta. Cantam os trovadores
Nas aldeias mortas. O rouxinol,
Poeira nos bosques sepultos, voa com os órgãos de suas asas
E soletra o seu canto de inverno aos ventos dos mortos.
A voz da poeira líquida que vem das fontes extintas

Está falando. O córrego seco
Salta com balidos e latidos aquáticos. O orvalho repica
Nas folhas trituradas e nos reflexos que há muito já não brilham
Da paróquia de neve. As bocas entalhadas na rocha são
cordas tangidas pelo vento.
O tempo canta por entre as obscuras campânulas mortas. Escuta.

Foi um som ou certa mão
Que abriu de par em par a tenebrosa porta na terra de outrora
E lá fora, sobre o pão do solo,
Uma ave se ergueu radiante como uma noiva em chamas,
Uma ave amanheceu, e seu peito se emplumou de neve e escarlate.

Olha. E os bailarinos se movem
Sobre os mortos, a neve se vestiu de verde, liberta ao luar
Com uma revoada de pombos. Exultantes, os cavalos de cascos solenes,
Centauros mortos, regressam e percorrem os alvos pastos alagados
Nas fazendas dos pássaros. O carvalho morto sai em busca do amor.

Os membros esculpidos na rocha
Saltam como ao som das trombetas. A caligrafia das velhas folhas
Está dançando. Os traços da idade sobre a pedra se entrelaçam num rebanho.
A voz de harpa da poeira das águas se desgarra de uma dobra das campinas.
Em busca do amor, alça seu voo a ave de outrora. Olha.

E as asas selvagens se elevaram
Sobre a sua cabeça enrugada, e a doce voz das plumas
Esvoaçou pela casa como se o pássaro entoasse louvores
E todos os elementos da lenta queda se rejubilassem
Porque um homem solitário se ajoelhara na taça dos vales,

Sob o manto, em sossego,
Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha,
E o céu dos pássaros com a voz emplumada o erguia ao sortilégio
E ele corria como o vento atrás do voo em chamas
Para além dos celeiros sem luz e dos currais da fazenda em calma.

Nos pólos do ano
Quando os melros morriam como sacerdotes nas sebes embuçadas
E as distantes colinas tangenciavam o tecido dos condados,
Sob as árvores de uma só folha corria um espantalho de neve,
Precipitando-se por entre os torvelinhos das moitas esgalhadas como cervos,

Andrajos e orações caíam sobre
As colinas ajoelhadas e ecoavam nos lagos adormecidos,
Perdidos a noite inteira e a vagar por muito tempo no despertar
Da ave através dos tempos, das terras e dos flocos de neve.
Escuta e olha por onde ela navega no mar agitado pêlos gansos,

O céu, o pássaro, a noiva,
A nuvem, a miséria, as estrelas fincadas no azul, o júbilo
Para além dos campos semeados e o tempo escarranchado na carne agonizante,
E os céus, o céu, a tumba, a ardente pia batismal.
Na terra que já fora, a porta de sua morte se abriu de par em par

E o pássaro desceu
Numa colina branca como o pão sobre a concha da fazenda
E os lagos e os campos flutuantes e os vales cruzados pelo rio
Onde ele rezava para alcançar o derradeiro prejuízo
E a casa das preces e do fogo, já terminado o conto.

A dança se extingue
Na brancura que já não reverdece, e, morto o trovador,
Aflora o canto nas aldeias de desejos calçados pela neve
Que outrora entalharam as silhuetas dos pássaros no pão profundo
E fizeram deslizar as formas dos peixes voadores sobre os lagos de cristal

Degolou-se o ritual
Do rouxinol e do centauro morto. As fontes voltam a secar.
Os traços da idade dormem na pedra até que a aurora se anuncie.
Jaz o júbilo. O tempo sepulta o clima da primavera
Que retinha e saltava com o fóssil e o orvalho renascido.

Porque a ave se deitara
Num coro de asas, como se estivesse morta ou adormecida,
E as asas se movessem em surdina e ele se sentisse louvado e casado,
E por entre as coxas da noiva envolvente,
A mulher com seus seios e o pássaro de crista celestial,

Foi ele enfim derrubado Ardendo no leito nupcial do amor,
No torvelinho do centro desejado, nas dobras
Do paraíso, no botão rodopiante do universo.
E ela se ergueu com ele florescendo em sua neve derretida.


poema do livro: Dylan Thomas / Poemas Reunidos (1934/1953),
com
tradução de Ivan Junqueira, publicado pela José Olympo Editora 

imagem:  Ricardo Gomez





Sobre Dylan Thomas  e sua poesia

A vida curta de Dylan Marlais Thomas foi um mar voraz, indomável como as ondas de sua terra natal: País de Gales. Para ele não havia limite. Tudo o que fazia era assinalado por forte luminosidade, mas revelava também carência, autodestruição e um indisfarçável egoísmo. De certa maneira, fazia barulho para chamar a atenção. Gostava de ser visto como um enfant terrible e para imprimir mai veracidade a esta imagem, o poeta vivia rapidamente, aliciado por seus próprios excessos. Isto, no fundo, o divertia.
Aos 11 anos já tinha escrito mais de duzentos poemas. Muito jovem dirigiu o jornal da escola, trabalhou como repórter em Swansea, abrindo logo caminho na BBC de Londres. Era um obssessivo. com a mesma intensidade, produzia e desperdiçava tempo. Refugiava-se nos pubs, consumindo sem medir energia, talento e saúde.
Escreveu roteiros para cinema, fez documentários, participou de movimentos, sinalizou, com seu comportamento, a emergente geração beat. Nos anos de 1950 era uma celebridade. Tinha prazer em ler seus versos em público, sua voz seduzia milhares de ouvintes, atraia novos admiradores; sua irreverência impressionava uma América atônita, em via de transformação.
Dylan Thomas era profundo, um solitário. Como escritor dedicou-se às palavras e compulsivamente, desejava penetrar na alma de todas as letras. Era um apaixonado pela sonoridade e, com estilo incrivelmente pessoal, soube construir uma obra - pequena, é verdade - com nome e sobrenome. O vigor de suas imagens e o ritmo de sua escrita são marcas registradas.
Aos 39 anos, desgastado fisicamente, saboreando a fama e o reconhecimento sem um tostão no bolso, Dylan enefrentava com muitas dificuldades o cotidiano. Em novembro de 1953, o poeta foi longe demais com a bebeida: apósmuitas doses, não resistiu a uma hemorragia cerebral no St. Vicente Hospital, poucas quadras do Chelsea Hotel, sua "casa" em Nova York. O escritor acabou vencido pela boemia, pela ansiedade um tanto juvenil, pela vida nômade e, tragicamente, pelo álcool. Mas deixou um legado indiscutível. Talento do mais puro malte.
Por trás da neblina de suas frases e versos, indiferentes às normas, habita um autor maduro, vivo, do primeiro time da literatura mundial.





texto de Maria Amélia Mello, para o livro
Dylan Thomas / Poemas Reunidos (1934/1953),
pela José Olympo Editora com tradução de Ivan Junqueira.





 

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